Peter Häberle e o Direito da saúde
- cleniojschulze
- 3 de nov.
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Peter Häberle é responsável por grandes transformações na Ciência Jurídica.
Suas ideias permitiram a pluralização do debate jurídico-processual, ampliando o círculo de intérpretes das leis e da Constituição.
Häberle, com base na proposta filosófica de Karl Popper, construiu a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, ampliando o espectro da hermenêutica constitucional a ponto de permitir aos indivíduos, cidadãos, grupos e entidades a participação no debate sobre as leis e sobre a Constituição.
A democratização da hermenêutica constitucional representa, assim, a transição “de uma sociedade fechada dos intérpretes da Constituição para uma interpretação constitucional pela e para uma sociedade aberta”.1 Nesse contexto, é possível mencionar que a hermenêutica tradicional caracteriza a sociedade fechada e a hermenêutica de Häberle se amolda à sociedade pluralista e aberta.
Häberle afirma que “[...] a interpretação constitucional não é um ‘evento exclusivamente estatal’, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático. A esse processo tem acesso potencialmente todas as forças da comunidade política.”2 O grande mérito dessa tese é estabelecer que os intérpretes jurídicos da Constituição não são os únicos indivíduos que vivem a norma, razão pela qual não detêm o monopólio da sua interpretação.3
Nesta visão, “[...] todos estão inseridos no processo de interpretação constitucional, até mesmo aqueles que não são diretamente por ela afetados”.4
A noção republicana de interpretação constitucional admite, portanto, que a sociedade debata com o Poder Judiciário questões de relevo, políticas de saúde por exemplo, que precisam ser estudas coletivamente, facilitando o controle democrático e autorizando que os indivíduos sejam mais proativos e protagonistas do Estado Constitucional.5
A pluralização da hermenêutica constitucional não figura apenas no plano acadêmico e teórico-filosófico.
A audiência pública é uma forma concretização da teoria de Häberle. É reunião em que se permite à coletividade a participação no debate sobre questão de interesse geral. Pode ser processual ou pré-processual.6
Na esfera judicial, permite-se promover audiências públicas em qualquer processo judicial relevante.
Trata-se, inegavelmente, de mecanismo que permite a interação entre o julgador com indivíduos especialistas na matéria objeto de processo judicial, que poderão apresentar seu posicionamento, demonstrando, especialmente, os impactos da decisão.
O Supremo Tribunal Federal já promoveu inúmeras audiências públicas para debater questões importantes para o Estado Brasileiro.
Na ADPF 54 (relator Ministro Marco Aurélio), discute-se a possibilidade de interrupção de gravidez por anencefalia. Na audiência pública, em 2008, colheu-se a manifestação de inúmeras representantes da sociedade, tais como médicos, religiosos, cientistas na área da saúde.
Talvez a mais importante audiência pública na área da saúde foi designada pelo então Presidente do STF Ministro Gilmar Ferreira Mendes na STA 175. Durante uma semana, foram ouvidos cinquenta especialistas, entre advogados, defensores públicos, promotores e procuradores de justiça, magistrados, professores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do SUS. O debate subsidiou as decisões nos processos de competência da Presidência versando sobre o direito à saúde, tais como a concessão gratuita de medicamentos, a internação em hospitais e a realização de cirurgias sem custo para o cidadão, balizando, ainda, outros julgamentos do Judiciário nacional (Agravos Regimentais nas Suspensões de Liminares nºs 47 e 64, nas Suspensões de Tutela Antecipada nºs 36, 175, 185, 211 e 278, e nas Suspensões de Segurança nºs 2361, 2944, 3345 e 3355, todos processos de relatoria da Presidência).
Por fim (mas não menos importante), a ideia de Häberle também esteve presente na Comissão Especial criada pelo Ministro Gilmar Mendes no âmbito da Repercussão Geral 1234 do STF e que culminou com mais de 20 sessões para debater e definir limites e possibilidades na judicialização da saúde. Tudo culminou com a publicação da Súmula Vinculante 60 que fixa poderosas balizas para o julgamento de processos judiciais sobre o direito da saúde.
A figura do amicus curiae também está consolidada no sistema jurídico pátrio e consiste na autorização para que terceiros, não litigantes, intervenham em processo judicial submetido ao controle difuso de constitucionalidade ou ao controle concentrado.
Trata-se de mais uma ideia de concretização da teoria de Häberle.
É o ‘amigo da corte’, que configura outro mecanismo de pluralização do debate constitucional, pois possibilita que todos os setores envolvidos com o tema possam suscitar e disponibilizar dados e informações ao relator e à Corte, sejam eles técnicos ou não jurídicos (argumentos metajurídicos, científico, social, religioso e filosófico).
A admissão processual do amicus curiae demonstra o caráter aberto e pluralista do processo constitucional brasileiro.
Há inegável legitimação democrática da decisão judicial proferida com base nas informações colhidas em audiência pública ou por intermédio do amicus curiae, todas propostas concretizadoras da filosofia de Häberle.
A consolidação da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição no sistema jurídico pátrio é reconhecida pelo próprio Häberle, ao afirmar que o tema:
Experimenta actualmente, sobre todo em Alemania, y de manera especial en Brasil, hasta en questiones particulares del derecho procesal constitucional (amicus curiae briefs), un reconocimento alentador. La sociedade aberta es una ‘constituida’, reconocible, por ejemplo, en la eficácia frente a terceros de los derechos fundamentales. Es expresión del status culturalis del individuo; el status naturalis es una (irrenunciable) ficción. No hay ninguna ‘liberdad natural’, solo hay liberdad cultural.7
Ou, ainda, em outra passagem:
En Brasil, la Suprema Corte há apelado recientemente de modo expreso, en sentencias particulares, a la ‘sociedade abierta de los intérpretes constitucionales’ para justificar el instituto del amicus curiae briefs. El derecho procesal constitucional se transforma asi en garantia del pluralismo y la participación, por gravoso que ello pueda ser a la vista de la sobrecarga de la mayoria de los tribunales.8
Peter Häberle demonstra que o seu objetivo é fortalecer o Estado Constitucional transferindo parte do centro decisório para os cidadãos diante da hipertrofia dos entes estatais.9
Significa, portanto, que a abertura da interpretação constitucional constitui predicado indissociável da jurisdição na perspectiva do Estado Constitucional Democrático.
Ou seja, a construção de um modelo aberto de decisão judicial confere legitimação democrática às decisões proferidas pelo Poder Judiciário e amplia a transparência necessária ao exercício da jurisdição constitucional.
Tal mecanismo permite que os indivíduos analisem e filtrem a decisão judicial para devolver, quem sabe no futuro, suas razões para o próprio tribunal em outra questão processual, porquanto a coisa julgada opera no plano processual, mas não no campo da política. Ou seja, há dialética contínua na sociedade aberta e a matéria pode voltar à Corte diante da superveniência de circunstâncias fáticas.
A partir daí é possível falar em diálogo político e social, decorrente da conversa do Judiciário com a sociedade.
Tudo isso confirma que a teoria da decisão judicial apresenta novas características, a apontar para a democratização da atuação do Poder Judiciário, que não está fora da arena dos debates, já que as suas decisões também são passíveis de discussão sem imunidade à crítica.
As considerações acima apresentadas denotam que a teoria da decisão judicial de Häberle transformaram o Poder Judiciário e o Estado Constitucional Democrático, impactando, inclusive, nas principais decisões proferidas em saúde pública e em saúde suplementar da história do Brasil, com destaque para as Súmulas Vinculantes 60 e 61 (setembro de 2024) a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 7265 (setembro de 2025).
Referências das fontes citadas:
1 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 12. Título original: Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein Beitrag zur pluralistischen und ‘prozessualen’ Verfassungsinterpretation.
2 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 23. Título original: Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein Beitrag zur pluralistischen und ‘prozessualen’ Verfassungsinterpretation.
3 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 15. Título original: Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein Beitrag zur pluralistischen und ‘prozessualen’ Verfassungsinterpretation.
4 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 32. Título original: Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein Beitrag zur pluralistischen und ‘prozessualen’ Verfassungsinterpretation.
5 A expressão Estado Constitucional exterioriza o predomínio da Constituição no sistema jurídico em contraposição à expressão Estado de Direito, que prestigia a lei. Sobre o tema, é interessante a observação de Gustavo Zagrebelsky: “Quien examine el derecho de nuestro tiempo seguro que no consigue descubrir en él los caracteres que constituían los postulados del Estado de derecho legislativo. La importancia de la transformación deve inducir a pensar en um auténtico cambio genético, más que en una desviación momentánea en espera y con la esperanza de una restauración. La respuesta a los grandes y graves problemas de los que tal cambio es consecuencia, y al mismo tiempo causa, está contenida en la fórmula del ‘Estado constitucional’. La novedad que la misma contiene es capital y afecta a la posición de la ley. La ley, por primera vez en la época moderna, viene sometida a una relación de adecuación, y por tanto de subordinación, a un estrato más alto de derecho establecido por la Constitución. De por sí, esta innovación podría presentarse, y de hecho se ha presentado, como una simple continuación de los principios del Estado de derecho que lleva hasta sus últimas consecuencias el programa de la completa sujeción al derecho de todas las funciones ordinarias del Estado, incluida la legislativa (a excepción, por tanto, solo de la función contituyente). Con ello, podría decirse, se realiza de la forma más completa possible el principio del gobierno de las leyes, en lugar del gobierno de los hombres, principio frecuentemente considerado como una de las bases ideológicas que fundamentan el Estado de derecho. Sin embargo, si de las afirmaciones genéricas se pasa a comparar los caracteres concretos actual, se advierte que, más que de uma continuación, se trata de uma profunda transformación que incluso afecta necesariamente a la concepción del derecho.” (El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 9 ed. Tradução Marina Gascón. Madri: Editorial Trota, 2009, p. 33-34). Pérez Luño afirma que o Estado Constitucional é o modelo de Estado das atuais sociedades pluralistas, complexas e pluricêntricas (PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Nuevos retos del Estado Constitucional: Valores, derechos, garantias. In: Cadernos de la Cátedra de Democracia y Derechos Humanos. Madri: Universidad de Alcalá, 2010, p. 66). O termo Estado Constitucional também é preferido por Canotilho (Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4 ed. Livraria Almedina: Coimbra, 2004). Por fim, importante registrar a colaboração de Cademartori e Duarte: “Já a diferenciação entre Estado de Direito (assim designado o Estado Liberal Clássico) e Estado Constitucional, segundo Pérez Luño, reside em um tríplice deslocamento do papel que desempenham, em termos institucionais, as normas constitucionais e infraconstitucionais, cuja posição atual no Estado Constitucional passa a ser a seguinte:
deslocamento do princípio da primazia da lei para o princípio da primazia da Constituição;
deslocamento da reserva da lei à reserva da constitucional;
deslocamento do controle jurisdicional da legalidade ao controle jurisdicional da constitucionalidade.
Em linhas gerais, no Estado Constitucional, os poderes políticos encontram-se delimitados e configurados a partir de um direito baseado primacialmente nos princípios constitucionais, formais e materiais, tais como os direitos fundamentais; a função social das instituições públicas; a divisão de poderes e a independência dos tribunais.
Esses fatores, por sua vez, apresentam como resultado uma forma de Estado na qual existe uma legitimação democrática e um controle pluralista do poder político e dos poderes sociais.” (CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. DUARTE, Francisco Carlos. Hermenêutica e argumentação neoconstitucional. São Paulo: Atlas, 2009, p. 31).
6 Enfatiza-se, no presente trabalho, as audiências públicas promovidas no curso de processo judicial.
7 HÄBERLE, Peter. La Jurisdicción Constitucional em la Sociedade Abierta. Tradução Joaquin Brage Camazano. In: Direito Público. Brasília: Síntese, jan-fev 2009, 193.
8 HÄBERLE, Peter. La Jurisdicción Constitucional em la Sociedade Abierta. Tradução Joaquin Brage Camazano. In: Direito Público. Brasília: Síntese, jan-fev 2009, p. 197.
9 HÄBERLE, Peter. La Jurisdicción Constitucional em la Sociedade Abierta. Tradução Joaquin Brage Camazano. In: Direito Público. Brasília: Síntese, jan-fev 2009, p. 190.
Como citar:
SCHULZE, Clenio Jair. Peter Häberle e o Direito da saúde. ln: Temas de Direito e Saúde. 03 Nov. 2025. Disponível em: www.temasdedireitoesaude.com. Acesso em: 03 Nov. 2025.
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